Queixando-se da imensa quantidade de neve que havia em seu quintal por conta da noite anterior, o Sr. Russel abriu sua porta de casa e respirou fundo para sentir a leve brisa do final da tarde. Nada deixava o idoso mais animado do que sua caminhada diária às exatas 18 horas, acompanhado sempre de seu melhor amigo e fiel companheiro, Spike. Apesar da nevasca ter deixado mais de 20cm de neve no chão, o cão foi na frente, como se estivesse abrindo o caminho e liderando a caminhada.
Toda sua relação de amor e confiança com o animalzinho poderiam ser explicadas por um motivo simples: ele era seu único amigo e seu porto seguro. O senhor de idade não contava com mais ninguém depois do falecimento de sua esposa e da perda de sua única filha. Holly podia ser considerada uma benção tardia, já que o casal engravidou da menina quando já estavam com mais de 40 anos. Eles não tinham conseguido engravidar antes e quando já haviam até mesmo desistido, receberam o último sopro de esperança dado pelo médico, ao constatar que inacreditavelmente, a esposa de Russel estava grávida!
Holly cresceu uma menina inteligente e bem educada, frequentando bons colégios e tirando notas altas. Não era metida em confusão e era conectada com seus pais de uma forma quase que poética. Algumas vezes, eles não precisavam nem mesmo falar, com apenas olhares já conseguiam identificar exatamente o que o outro estava pensando. Mas foi durante a faculdade que as coisas começaram a mudar para a família e o conto de fadas que eles levavam, estava com os dias contados…
As noites agradáveis deram lugar às madrugadas preocupantes para o casal, sem notícias de sua filha, por onde andava ou com quem estava. As boas notas foram caindo gradativamente, ao ponto de uma reunião na escola ter sido agendada. E, de repente, a gentil e doce Holly virou uma teimosa e mentirosa jovem, que o tempo todo fugia escondida para festas e que não conversava ou se abria com os pais. Contudo, tudo isso não aconteceu do mais absoluto nada, pelo contrário, a mudança de Holly tinha nome e sobrenome…
Devin Wallace. Ele era o recém namorado dela e, na opinião de seus pais, o verdadeiro responsável pela confusão que estava se tornando a vida da jove e toda sua mudança de comportamento. Sendo alguém que nunca trabalhou na vida e foi reprovado por 3 anos seguidos na escola, Devin ganhou o coração de Holly em uma partida de Hockey, quando ao marcar um ponto, fez uma dedicatória para a garota mais linda na platéia.
O Sr. Russel e sua esposa nunca tiveram problema com namoros ou rapazes cortejando sua filha, mas sabiam desde o início que aquele jovem encrenqueiro, não era uma boa escolha. Afinal, desde que eles começaram a sair, Holly não queria mais estudar, trabalhar ou muito menos ficar perto de seus pais, apenas ansiava por aventuras e viagens, coisa que a pequena cidade de Akranes, na Islândia, não poderia proporcionar. Foi assim então que, ao atingir a maioridade, a jovem resolveu viajar o mundo como uma peregrina, dando adeus aos seus pais e arriscando a sorte com seu namorado Devin, que era o idealizador e maior incentivador da viagem.
Seus pais tentaram pôr um pouco de juízo em sua cabeça jovem e inconsequente, mas sendo maior de idade, ela tinha total poder de decisão sobre suas atitudes, não podendo ser impedida por ninguém. Ela deu adeus aos seus pais de uma maneira fria, apenas acenando de longe, à medida em que o carro de Devin se distanciava da pequena casa em que eles moravam. Com o coração apertado, o Sr. Russel abraçou sua esposa com força, como se dissesse que tudo iria ficar bem. Entretanto, o destino foi cruel com a família, e em menos de 4 anos, eles receberam uma terrível carta, que mudou suas vidas para sempre…
Os dois tentavam se comunicar com a filha, mas nunca obtinham resposta alguma. Até que um dia, eles receberam uma carta em nome da jovem. Infelizmente, a empolgação para abrir logo o envelope se esvaiu ao lerem o conteúdo da carta. Holly havia falecido em um grave acidente de carro ao voltar de uma festa com seu namorado Devin. A carta da polícia local não detalhou muito bem o motivo do acidente, mas deixou claro que o condutor do veículo em que Holly estava, havia testado um alto grau de embriaguez. O casal não sabia na época, mas alguns meses depois, Devin admitiu diante de um juíz que estava bêbado e assumiu a responsabilidade pelo acidente.
O Sr. Russel havia recebido a notícia como se fosse a de sua própria morte. Desde que sua filha saiu de casa e não deu mais notícias, o senhor de idade já não era mais feliz, mas mantinha esperanças de que um dia ela iria ficar mais velha e poderia, quem sabe, até mesmo voltar. Porém, com a notícia de seu falecimento, os tristes dias se tornaram rotina e chorar tornou-se algo banal para o casal. Sua esposa foi internada cerca de 3 meses depois e faleceu no hospital vítima de um ataque cardíaco. O médico não soube explicar com certeza o que levou àquilo, mas afirma que o estresse e trauma vividos por ela certamente contribuíram para o desfecho fatal.
É difícil dizer como a vida do Sr. Russel seria dali em diante se não fosse por seu fiel companheiro Spike. Desde que o encontrou revirando latas de lixo próximo a sua casa e o adotou, o senhor de idade voltou a ter um motivo para acordar todas as manhãs. E agora, passeando com seu cachorro, Sr. Russel esqueceu de seus problemas. Mas, de repente, seu amigo ergueu as orelhas e começou a correr mais rápido para frente.
O Sr. Russel pensou que seria apenas um esquilo ou uma raposa que teria chamado a atenção de Spike. Mas ao demorar para retornar, o idoso seguiu sua trilha e quase desmaiou com o susto que levou, ele esperava ver tudo, menos a cena que presenciava naquele momento…
Um menino de cerca de sete anos estava debaixo de uma árvore acariciando a cabeça do Spike sem nenhum medo ou cautela. Porém, quando notou a presença do senhor de idade, ele se assustou, e logo se encolheu. “Calma. Não tenha medo, meu jovem! Como você chegou até aqui?” Indagou o Sr. Russel. Sua pergunta era claramente bem fundamentada, afinal, os dois estavam no meio de uma floresta e a temperatura se aproximava da negativa à medida com que a noite caia. Entretanto, o menino não o respondeu, apenas abaixou a cabeça e começou a recuar.
Nesse momento o Sr. Russel percebeu que o menino apresentava uma marca em seu rosto, como se ele tivesse dado uma forte topada em um tronco ou galho de árvore. “Olha, tudo bem se você não quiser falar comigo, mas a noite está se aproximando e aqui é um lugar perigoso para uma criança. Se você quiser, pode acompanhar o spike e a mim de volta para casa”.
O garoto parecia desconfiado, mas não tinha muitas opções, então ele aceitou o convite do idoso de volta para sua cabana. Lá, o Sr. Russel acendeu a lareira e serviu chocolate quente com biscoitos para o menino, que rapidamente foram devorados. Ele claramente não estava muito à vontade e sempre olhava para os lados, como se estivesse com medo de surgir alguém ou alguma coisa. O idoso percebe a preocupação e tenta absorver mais informações dele, perguntando qual era seu nome, onde ele morava e quem eram seus pais. Porém, o silêncio ainda era a principal resposta do garoto e notando que ele não falaria de forma alguma, o senhor de idade apenas preparou o quarto de hóspedes e mostrou ao jovem, para que ele pudesse passar a noite.
Depois de algumas horas de um bom descanso, o sol nasceu novamente, como se iluminasse não somente um dia novo, mas renovasse uma vida. O garotinho abriu a porta e sentou-se a mesa para se deliciar com um café da manhã preparado pelo idoso, que logo após a refeição, tentou novamente contato, mesmo que sem esperanças de ouvir uma resposta. Mas para sua surpresa, finalmente um alto e bom som saiu da boca do menino…
“Me chamo Theo e moro um pouco longe daqui com meu pai. Eu saí de casa para dar um passeio e acho que andei demais e me perdi… Desculpa não ter falado antes, estava com medo” Disse a criança. O Sr. Russel ficou alegre por finalmente ouvir a voz de Theo e disse que estava tudo bem, perguntando em seguida onde era a casa de seu pai, para que ele pudesse ser levado de volta. Porém, o garoto se mostrou ansioso, e depois de muita insistência deu detalhes de onde ficava sua casa. O Sr. Russel calçou suas botas, fez uma lancheira com pequenas guloseimas para o menino e foram na direção indicada pelo menino. Depois de 40 minutos andando, o idoso finalmente tocou a campainha, esperando ser recebido por um pai preocupado.
Ele bateu a porta, tocou a campainha, mas nada aconteceu. O idoso resolveu ir bem cedo, para justamente encontrar o pai antes do comum horário de trabalho. Theo, que ainda não estava se comunicando muito, disse: “Ele deve estar dormindo, Sr. Russell, como sempre faz”.
O senhor de idade então observa que a porta, na verdade, não estava trancada. E ao girar a maçaneta, ela se abriu. O idoso jamais entraria na casa de alguém dessa maneira, mas considerou que o motivo era excepcional e decidiu colocar os pés para dentro, à procura do responsável da criança. Logo depois de entrar, ele pôde observar que quase tudo estava coberto com poeira e lixo. Haviam garrafas de bebidas álcoolicas espalhadas por todo o lugar, embalagens de pizza e restos de comida enlatada. O Sr. Russel caminhou com cuidado e encontrou um homem deitado no sofá em meio a toda aquela sujeira… O cheiro de álcool exalava não somente do ambiente, mas também do homem deitdo ali. É ele… Esse é meu pai”, disse o menino, para o choque de Sr. Russel…
Antes que o idoso pudesse pensar no que fazer, o homem que estava deitado no sofá acordou…
“O que é isso? Quem é você e o que você está fazendo na minha casa? Como você entrou aqui, velho idiota?!” Disse o homem em suas primeiras palavras para o Sr. Russel. Muito educado e controlado, o idoso explicou a situação e de como havia encontrado seu filho perdido na floresta e apenas havia entrado porque ninguém atendia a campainha. “O QUE? Essa peste fugiu outra vez? Ah, ele vai se ver comigo…”
O senhor de idade apenas conseguia pensar consigo mesmo sobre a frase que havia acabado de escutar, pois claramente o pai nem mesmo sabia que seu filho esteve em perigo no dia anterior. “Como alguém perde um filho e nem mesmo percebe?” pensou o Sr. Russel.
Sendo puxado pelo pai com extrema força, o menino levou uma dura bronca e, por fim, um forte tapa no rosto. O idoso interviu de prontidão, ficando entre Theo e seu pai, impedindo a continuidade das agressões. Enquanto estava em sua cabana, Sr. Russel havia observado que os braços e rosto do menino estavam marcados, e agora sabia que o real motivo não era o resvalo em galhos ou topadas em troncos de árvores.
“O que você está fazendo? Não basta invadir minha casa e sequestrar o garoto? Agora vai querer me ensinar a educar meu próprio filho? É melhor você sair da frente, velho, antes que sobre para você também!”, ameaçou o homem. Contudo, o Sr. Russel não moveu 1 centímetro sequer, ficando firme onde estava, protegendo o pequeno Theo. Já o homem, cumpriu o que havia prometido, e lhe deu um forte empurrão, que fez o senhor cair para trás.
Após isso, o homem se dirigiu de forma determinada para cozinha, e Sr. Russel ouviu o som de gavetas sendo reviradas. Sem perder tempo e percebendo o terrível erro que foi ter entrado naquela casa, o idoso não pensou duas vezes e saiu correndo daquele terrível lugar, mas não sozinho… Ele pegou Theo pela mão e o levou junto, saindo dali o mais rápido que conseguia.
Sr. Russel ficou em choque com o que havia acabado de presenciar. Agora tudo fazia sentido em sua mente. Theo nunca saiu para passear e se perdeu, ele claramente havia tentado fugir depois de mais uma agressão de seu pai bêbado. O garoto preferiu arriscar suas chances em uma floresta congelada à noite do que passar mais um dia ao lado daquele péssimo ser humano. E a preocupação ao conhecer o idoso pela primeira vez estava completamente justificada, afinal, como ele poderia ter confiança em alguém sendo criado daquela forma?
O garoto apenas perguntou se poderia passar a noite na cabana do idoso mais uma vez, implorando para que ele não fosse levado de volta para aquele lugar. “Não se preocupe agora, Theo. Farei de tudo ao meu alcance para que você nunca mais fique na companhia daquele monstro! Agora eu entendi tudo!”, disse o Sr. Russel abraçando o menino que a esta altura estava chorando e com medo. Juntos, os dois voltaram para a cabana na floresta e tentaram ficar mais calmos diante de todo aquele dia caótico.
Ainda naquele dia 12 de fevereiro de 2009, a primeira coisa que o Sr. Russel fez após alimentar Theo durante o almoço, foi ir à delegacia para contar tudo que sabia e que havia presenciado. O garoto prestou depoimento e fez um exame para constatar suas lesões por todo o corpo, contando que o pai sempre o repreendia violentamente, caso ele se aproximasse de seu material de trabalho e que tudo piorava quando o homem estava bêbado, o que acontecia quase todas as noites, tornando ele um homem extremamente instável e perigoso.
Ele foi identificado como Sebastian Gibson e, no mesmo dia, uma operação que reuniu viaturas e até mesmo o apoio de outras delegacias invadiu a casa de Sebastian com um mandado de busca e apreensão. Acontece que Theo foi questionado sobre o material de trabalho de seu pai e deu mais detalhes, de forma sincera e ingênua. Ele não sabia, mas o que ele disse deu origem em uma operação maior do que a de costume para casos de agressão familiar. Ao invadirem o local, os oficiais encontraram exatamente o que estavam buscando há meses….
Além de toda a sujeira e bagunça que o Sr. Russel já havia declarado, um dos cômodos da casa estava repleto de celulares, máquinas de clonar cartão e diversos itens para falsificação de documentos e aplicação de golpes. Foram encontrados bilhetes de loteria falsos, que eram usados para enganar pessoas mais velhas e roubar os seus dados bancários. Sebastian foi preso em flagrante e ao ver o Sr. Russel parado ao lado de uma das viaturas, soube exatamente quem foi o responsável pela sua queda. O idoso apenas o encarou com desprezo e pena.
A polícia localizou uma tia de Theo, irmã de sua falecida mãe e sua guarda foi entregue para ela. O garotinho só teve contato com a tia no início de sua vida, quando ainda era um bebê e sua mãe estava viva. Para evitar levantar suspeitas sobre sua vida de ilegalidades, o pai de Theo o impedia de ter qualquer contato com a família de sua mãe e repelia agressivamente as tentativas de contato da família.
Theo foi recebido com muito carinho por sua tia. Ele era visitado com frequência por Sr. Russel e Spike. A família de Theo e o idoso se tornaram grandes amigos. Eles eram extremamente gratos por tudo que ele havia feito e passaram a convidá-lo quase todos os finais de semana e em datas comemorativas, dando à Theo um avô adotivo e à Russel uma segunda chance para ser feliz.